Mário Frigéri
“Dentre muitos milhares de homens, talvez haja um que se esforce para obter perfeição, e dentre aqueles que alcançaram a perfeição, é difícil encontrar um que Me conheça de verdade.”
Krishna (Bhagavad-Gita, 7:3)
Por que Jesus insistia tanto no Orai e Vigiai? Jesus orava e vigiava constantemente e instava com Seus discípulos para que orassem e vigiassem também.
Essa Oração e essa Vigilância devem ser muito importantes, senão o Divino Amigo não voltaria a elas com tanta insistência em várias passagens dos Evangelhos.
Qualquer um dos quatro Evangelhos é como imenso celeiro abarrotado de sementes. Quem o leu de ponta a ponta foi como se derramasse o olhar sobre essa enorme sementeira. Teve uma excelente visão, viu muito, mas não foi além da superfície. Se parar por aí, terá conhecido o Evangelho apenas pela rama. Se se interessar por assimilá-lo realmente, não o poderá fazer de uma só vez. O ideal é que peça a Deus vida longa e comece a pegar sementinha por sementinha, examinando uma por vez, pacientemente, com respeito sagrado, percuciente olhar e acrisolado amor. E descobrirá, surpreso, que em cada uma delas existe todo um Infinito palpitante de vida, assim como a maior hortaliça está concentrada na menor das sementes, o gigantesco carvalho está contido na pequenina bolota e o deslumbrante Universo está infuso no átomo.
Nas linhas que se seguem, convidamos o leitor amigo a examinar conosco uma dessas sementinhas. Exatamente aquela que o Cristo semeou sob o nome de Oração e Vigilância.
Quase todos nós pensamos saber o que é Orar e Vigiar. Mas será que o saberemos realmente, à luz do entendimento real com que o Cristo transmitiu esse elevado conceito à Humanidade?
Comecemos pela Oração, porque orar é mais simples que vigiar e foi por ela que o homem principiou seus contatos com a Espiritualidade. Sem esquecer, no entanto, que o conceito é dual e só se completa com a Vigilância, conforme verificaremos mais adiante.
A Doutrina Espírita é pródiga de luz nesse campo e uma vista de olhos por suas páginas será muito gratificante e de molde a atender aos mais íntimos anseios da alma.
Selecionamos dois autores e três livros para essa primeira exposição. O item I é uma síntese sobre a prece, de O Livro dos Espíritos, sistematizado por Allan Kardec; os itens II e III são da obra Mecanismos da Mediunidade, e o item IV, de Os Mensageiros, ambas ditadas por André Luiz e psicografadas por Francisco Cândido Xavier (Ed. FEB). Os itálicos das citações, quando forem originais, serão assinalados.
ORAÇÃO
I - A prece é sempre agradável a Deus quando ditada pelo coração, pois, para Ele, a intenção é tudo. Orar a Deus é pensar nEle, aproximar-se dEle, pôr-se em comunicação com Ele. A três coisas podemos propor-nos através da prece: louvar, pedir, agradecer. As pessoas que oram muito mas não se melhoram em sua conduta são as que fazem da prece uma inútil ocupação do tempo. O essencial não é orar muito, mas orar bem, fazendo da oração um estudo de si mesmas, transformando-se intimamente para melhor. (Grifo do original.)
II - A mente centralizada na oração pode ser comparada a uma flor estelar, aberta ante o Infinito,absorvendo-lhe o orvalho nutriente de vida e luz.
III - Orar constitui a fórmula básica da renovação íntima, pela qual divino entendimento desce do Coração da Vida para a vida do coração.Semelhante atitude da alma, porém, não deve, em tempo algum, resumir-se a simplesmente pedir algo ao suprimento Divino, mas pedir, acima de tudo, a compreensão quanto ao plano da Sabedoria Infinita, traçado para o seu próprio aperfeiçoamento, de maneira a aproveitar o ensejo de trabalho e serviço no bem de todos, que vem a ser o bem de si mesma.
IV - (...) o trabalho da prece é mais importante do que se pode imaginar no círculo dos encarnados.
Não há prece sem resposta. E a oração, filha do amor, não é apenas súplica. É comunhão entre o Criador e a criatura, constituindo, assim, o mais poderoso influxo magnético que conhecemos.
Muito mais poderia ser colhido nesse jardim de infinitas flores, mas o espaço de um artigo é restrito e o que aí está já é suficiente para o que desejamos demonstrar.
Orar é elevar o pensamento a Deus, potencializado pelos mais puros sentimentos. Assim, a mente está carregada de eflúvios mentais na oração, e esses pensamentos são transmitidos à Divindade ou às entidades superiores às quais são dirigidas as rogativas.
O pensamento é tão real em seu campo quanto qualquer objeto no plano físico. No ensaio que deixou escrito sob o título "Fotografia e Telegrafia do Pensamento" (Obras Póstumas), Allan Kardec demonstra o potencial imenso que um pensamento fortemente pensado possui - o grifo é do Mestre - e o poder extraordinário que exerce sobre os Espíritos e os homens.
Nessa mesma linha de raciocínio, André Luiz faz profundo e surpreendente estudo das ondas mentais, no primeiro livro citado, analisando desde as ondas mentais fragmentárias dos animais até as ondas de oscilações longas, médias e curtas em que se exterioriza a mente humana, sem esquecer os raios superultracurtos em que se exprimem as legiões angélicas, através de processos ainda inacessíveis à nossa observação.
O homem é um transmissor quando ora. A sua mente funciona como fonte de emissão de pensamentos. É um foco a enfeixar e direcionar seus raios para o Alto. A oração é assim uma atividade mental, e até verbal, gerada pelo ser que ora. Em ambos os casos a mente está em plena atividade, reproduzindo as pulsações e os sentimentos mais íntimos do ser que os esteja gerando.
VIGILÂNCIA
Vigilância é algo um pouco diferente, constituindo-se no inverso da oração. Vigilância e Meditação, como veremos agora, são a mesma coisa.
Quando Jesus dizia: Vigiai!Ele queria dizer: Ficai em silêncio, espiritualmente alertas, despertos, conscientes.Na Vigilância não pode haver pensamento. Na Vigilância o pensamento está ausente.
E por que está ausente?
Porque na Vigilância ou Meditação o homem está em estado de receber, não de transmitir. Se há pensamento na mente, não pode haver recepção. A via está ocupada. As duas coisas não podem ocorrer ao mesmo tempo.
A recepção somente ocorre se a casa mental estiver vazia e silenciosa. Mas não de um silêncio que seja apenas a ausência de pensamento, e sim de um silêncio muito mais profundo, que só a consolidação da solitude interior pode proporcionar.
Oração e Vigilância são uma pista única de mão dupla alternativa: quando há fluxo numa direção, não pode haver fluxo na direção contrária. O fluxo tem de ser controlado. Se o emissor está expedindo pensamento, não pode estar concomitantemente recebendo pensamento.
Imaginemos dois jovens motoristas que se envolvam num acidente automobilístico. Ambos acionam seus celulares, solicitando socorro às respectivas seguradoras. O primeiro passa as informações e recebe a resposta tranquilizadora de que todas as providências estão sendo tomadas de imediato e que a ajuda já está a caminho, sendo-lhe necessário apenas aguardar. O segundo - lembre-se o leitor de que isto é uma hipótese - não aprendeu a manipular convenientemente o aparelho e somente logra transmitir sem receber, consegue ser ouvido pela seguradora, sem, no entanto, ouvi-la. Sabe que há alguém na outra ponta da linha, mas não lhe é possível obter essa confirmação. Narra-lhe o acidente e também pede providências urgentes. Mas após desligar o aparelho, fica numa expectativa cheia de aflição: e se houver alguma prestação do seguro em atraso e o socorro não for enviado?
Em termos de Oração e Vigilância, o primeiro orou e vigiou, e por isso ficou satisfeito e tranquilo. O segundo quedou-se inseguro e expectante, porque apenas orou. E segundo Jesus não basta orar: é preciso Orar e Vigiar.Já está presente no mundo o conceito de que na Oração o homem fala com Deus e na Meditação Deus fala com o homem.
É claro que o fato de não ter obtido resposta não significa que o segundo motorista ficará sem socorro, caso estejam implementadas suas obrigações para com o seguro. Mas ele se privou do duplo objetivo desse intercâmbio, a certeza que buscava quanto ao socorro requerido e o conforto esperado, e que poderia ter recebido ambos do agente, se com ele houvesse dialogado. Mas isto não aconteceu e ele perdeu a paz. Ele sabia transmitir, mas, infelizmente, não fora orientado para receber. Fora instruído mas não educado.
Não será o caso da maioria da Humanidade?
CONSCIÊNCIA ATIVADA E NÃO-MENTE
Quando os discípulos adormeceram enquanto Jesus orava no horto, Ele voltou e lhes disse: - Não pudestes vigiar comigo nem um pouco?
Certamente a vigilância deles não era imprescindível ao Amado Mestre para o cumprimento de Sua Missão. Mas Jesus é Mestre e Educador, como recorda magistralmente Pedro de Camargo. Ele os estava iniciando nesse acendrado caminho da recepção da resposta divina, que só pode ser obtida pela Meditação.
Se eles estivessem despertos ou alertas mas com a presença de pensamentos, não estariam receptivos à resposta do Alto. E se estivessem vazios de pensamentos mas adormecidos (como era o caso), também não serviriam para aquela finalidade. Segundo os mais experientes meditadores - e o primeiro a aflorar-nos à mente é São João da Cruz -, o ponto crucial na Vigilância ou Meditação é este: consciência ativada e não-mente, ou seja, alerta máximo de consciência sem a mais leve sombra de pensamento.
Causa estranheza, a princípio, falar de ausência ou anulação da ação do pensamento. É intuitivo seja o pensamento algo muito silencioso e imperceptível e sua ausência, para muitos, seria talvez a inexistência do próprio ser. Mas não é bem assim.
Entendamo-nos quanto aos vocábulos. Não se trata da extinção do pensamento, mas de sua ausência. Assim como a presença da luz torna a treva ausente, a ausência da luz torna a treva presente. Ambas continuam existindo, embora uma se torne a negação da outra. O pensamento, quando se condensa em vocábulos e se transforma em veículo de comunicação linear, pode tornar-se estorvo em níveis mais quintessenciados de entendimento. Uma vez encerrada a Vigilância, os pensamentos voltam a povoar a mente.
O pensamento é para o Espírito o que a palavra é para o homem. Muitos homens, conversando ao mesmo tempo num mesmo recinto, criam uma confusão de sons e vozes que chega a gerar certo mal-estar naqueles que os ouçam após determinado tempo. Quem permaneceu num pregão de Bolsa por cinco minutos, em horário de pico, sem estar acostumado com o ambiente, sabe o que isto significa.
O mesmo se dá com o pensamento. Muitos homens em bloco, pensando ao mesmo tempo, criam idêntica algaravia nos ouvidos de um Espírito que esteja presente entre eles.
SILÊNCIO MENTAL
A título de ilustração, suponhamos um grupo de vinte pessoas reunidas em silêncio, com o objetivo de orar. No plano físico elas poderão estar perfeitamente quietas, em aparente concentração. Mas se não tiverem educação mental para a manutenção de silêncio interior, e emitirem consciente ou inconscientemente quaisquer sussurros mentais ou tipos de pensamentos, estarão gerando bulha no mundo do espírito.
Diante disso, como atingir esse estado de quietação mental, se a mente, via de regra, é sempre tão ativa e reconhecidamente rebelde e voluntariosa?
A resposta a esta pergunta é tão importante que aqueles que a conhecem e vivenciam encontraram a chave da perfeita serenidade interior. Pode-se dizer mais: encontraram a divindade em si mesmos, o chamado Reino dos Céus. Chegaram ao Lar.
A Bíblia Sagrada confirma essa verdade sob o véu diáfano da letra: Aquietai-vos, e sabei que Eu sou o Senhor, (...) (Salmos, 46:10). A mente serena é como a face de lago tranquilo, nas horas calmas da madrugada. A polidez de seu espelho líquido pode refletir com perfeição a imagem da Lua ou a beleza cintilante das estrelas. Da mesma forma, apenas a mente ou a alma asserenada pode sentir e refletir a presença do Eterno.
Quando Sua Voz comunicou-se pela primeira vez com Pietro Ubaldi*, na "Mensagem de Natal", deu-lhe logo de saída a fórmula dessa pedra filosofal que o buscador procura por vidas inúmeras e nem sempre consegue encontrar:
"No silêncio da noite santa, escuta-me. Põe de lado todo o saber e tuas recordações; põe-te de parte e esquece tudo. Abandona-te à minha voz, inerte, vazio, no nada, no mais completo silêncio do espaço e do tempo.Neste vazio ouve minha voz que te diz - ergue-te e fala: Sou eu."
Este abandonar-se à potência sideral, inerte, vazio, no nada, ou seja, na mais perfeita serenidade interior e absoluta ausência de pensamentos ou saberes humanos e recordações, é uma filigrana de ouro que não passa despercebida ao leitor atento. É aquela pérola do campo referida por Jesus a Seus discípulos: a Vigilância. Quando o homem a encontra, vai, vende tudo o que tem para comprá-la.
Adverte ainda Sua Voz, em A Grande Síntese:
"O máximo da vossa vida psíquica tarda a chegar e comparece muitas vezes por último, muito depois da juventude, do vigor físico, qual última delicada flor da alma. Depois é o redobramento da consciência sobre si mesma, a reflexão, a absorção do fruto da experiência e a assimilação, a madureza do espírito num corpo decadente. Poucos, os adiantados, aí chegam cedo; muitos chegam tarde; alguns, os novatos da vida psíquica, não conseguem chegar."
É porém necessária uma longa e penosa caminhada até atingir esse ponto de mutação, em que a alma contempla em si, extasiada, o desabrochar do lótus fulgurante, a mais alta flor da evolução espiritual. É a chegada ao Reino dos Céus, um êxtase, mas o seu preço foi altíssimo. Segundo os vencedores, o peregrino desta longa e sinuosa senda deverá ter sempre presente a lição do Apóstolo Paulo, de que "(...) através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus." (Atos, 14:22.)
Pelas laboriosas mãos de Divaldo Pereira Franco, Joanna de Ângelis contemplou os corações anelantes de luz com uma página memorável, intitulada "Necessidade da Meditação". Ali a sublime Educadora revela que, inicialmente, os pensamentos e sentimentos serão parte da meditação, até o momento em que já não seja mais necessário ao meditante pensar ou aspirar, mas apenas ser. Nesse estágio, ele anula a ação do pensamento para simplesmente sentir, viver, tornar-se luz. (Momentos com Jesus.)
Em essência, nisto consiste a Vigilância ou Meditação: é ficar silenciosamente em stand by, mentalmente vazio mas fantasticamente alerta. Não vale cochilar ou adormecer. As aglutininas mentais insinuam-se como brando anestésico nessas horas e os próprios Apóstolos sucumbiram a seus amavios. O certo é que a sonolência não faltará. E aí muitos verão que aquele fantasticamente empregado há pouco para destacar o alerta não é recurso literário.
Mas a lição completa revelada por Jesus àqueles que o Pai Lhe deu é Orar e Vigiar, ou seja, transmitir e receber. O mundo tem sabido, mal-e-mal, transmitir. Talvez a conquista social da recepção divina esteja reservada ao novo milênio.
Portanto, amigo leitor, na próxima vez que Orar, procure em seguida Vigiar - se já não o estiver fazendo -, ficando sereno, extático, na mais absoluta quietude e paz interior, a fim de aguardar e receber a resposta suprema, caso esteja esperando por uma.
É o que o Cristo espera daqueles que aspiram ao discipulado real, através desse diálogo de alma para alma que todos terão um dia com a Divindade, conforme o caminho revelado por Ele na Sua Oração ao Pai, preparando neste mundo a tão almejada unificação da Humanidade:
- "Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim: por intermédio da sua palavra, a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim,e eu em ti, também sejam eles em nós: (...) a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade." (João, 17:20-23.)
* Médium e pensador espiritualista. (N. da R.)
Fonte: revista Reformador, de abril de 2002