No capítulo XV de O Evangelho segundo o Espiritismo, intitulado “Fora da caridade não há salvação”, itens 8 e 9, Allan Kardec analisa a questão de não haver salvação fora da Igreja ou fora da verdade.
Em momento algum o Codificador sugere ou insinua que fora do Espiritismo as criaturas humanas estariam fadadas a sofrer e a serem infelizes.
Na nota à questão 982 de O Livro dos Espíritos, ele afirma: “[...] O Espiritismo ensina o homem a suportar as provas com paciência e resignação; afasta-o dos atos que possam retardar-lhe a felicidade, mas ninguém diz que, sem ele, não possa ela ser conseguida”.
Admitir o Espiritismo como caminho único e exclusivo para a conquista da paz interior é assumir uma postura nitidamente fundamentalista e contrária à opinião dos Espíritos Superiores.
O teólogo Leonardo Boff(1) afirma que o “fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista”. E salienta: “[...] quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade, e seu destino é a intolerância”.
É preciso distinguir a visão que o Espiritismo nos dá e a aplicação que fazemos dos seus princípios em nossa vida prática. Foi por isso que o educador Pedro de Camargo (Vinícius), (2) afirmou: “[...] A consciência religiosa importa em um modo de ser, e não em um modo de crer”.
Mas há momentos em que a nossa intolerância e incompreensão não se voltam apenas para os profitentes de outras religiões. Às vezes se apresentam nas nossas relações cotidianas, na intimidade dos centros espíritas que frequentamos.
Se um companheiro se afasta das atividades que desenvolve num determinado Centro, julgamos, apressadamente, que possa estar sendo vítima de um problema obsessivo, ou que de alguma forma não se encontra no seu melhor juízo.
Nem sempre cogitamos das suas necessidades materiais na condução da sua família; não ponderamos sua idade ou o imperativo de estudar, a fim de poder realizar-se profissionalmente; muitas vezes não nos perguntamos sobre a sua saúde e a necessidade de tratamento médico, terreno e especializado, como, aliás, sempre fizeram médiuns como Chico Xavier. Não entendemos que o companheiro que trabalhou e reuniu recursos tem direito ao lazer, a tirar férias junto de sua família e que o repouso está consagrado nas leis civis e na lei divina do trabalho. Ignoramos ou esquecemos a atenção que os filhos pequenos reclamam e nem sempre cogitamos das insatisfações que alguém possa estar sentindo com a condução das atividades da instituição; afinal, estamos tão satisfeitos e concentrados no que fazemos que não percebemos que isso possa ocorrer com alguém.
O fato é que tendemos a avaliar o outro pelas nossas medidas. Se estamos tantos dias e tantas horas envolvidos com as atividades espíritas, por que o outro não se envolve com a mesma intensidade?
Esquecemos que cada um se encontra em determinado estágio evolutivo, com noção diferenciada de tempo perdido ou bem aproveitado.
Alguém que tenha sérios compromissos na área mediúnica, por exemplo, na medida em que não dá continuidade à educação das forças que vibram em si, tanto no Centro quanto fora dele, pode, naturalmente, desequilibrar-se, mas não como castigo da Espiritualidade ou punição divina. É natural que toda ferramenta não utilizada ou usada de forma indevida, sem manutenção, contraia ferrugem. E isso vale para qualquer situação na vida, inclusive para a relação que estabelecemos com nossos compromissos espirituais.
Quando Allan Kardec e a Espiritualidade enfatizam a necessidade do bem, estão dilatando o nosso conceito de salvação e felicidade, estão nos dizendo que a máxima não é fora do centro espírita não há salvação, e, sim, fora da caridade não há salvação.
Portanto, se um companheiro se afasta momentânea ou definitivamente de um Centro Espírita, isto não quer dizer que esteja se afastando da prática da caridade que poderá se dar em qualquer lugar. Precisamos atentar para os reais motivos que determinaram este afastamento, interessar-nos pelo encarnado como nos interessamos pelos desencarnados, entendendo o que se passa com ele, auxiliando-o naquilo que estiver precisando.
Ao mesmo tempo é válido nos questionarmos se somente os espíritas frequentadores de Centro possuem Espíritos protetores. E os que não são espíritas? Não possuem amigos espirituais auxiliando-os nas pesquisas, nas assembleias legislativas, no poder executivo, no magistério, na empresa onde atuam, nas atividades que realizam como autônomos, nas forças armadas, etc.?
Externar nossa atenção, carinho e preocupação com os amigos é atitude cristã. Sentir a falta e desejar a presença deles no ambiente onde atuamos é testemunhar o amor que nutrimos por eles. Porém, julgar e pressagiar terríveis males em função de seu afastamento é assumir uma posição radical com os próprios companheiros de ideal.
Não queremos, contudo, fazer apologia da deserção, nem incentivar ninguém a relaxar nos seus compromissos espirituais. Mas entendemos que esta relação precisa ser saudável, consciente, reflexiva e não baseada em temores ou caracterizada por um ativismo, onde a preocupação maior é realizar quantitativamente, produzir apenas.
A religiosidade que o Espiritismo nos propõe não é a do tipo devocional e contemplativo, mas relacional e operativa, isto é, melhorando nossas relações interpessoais, estamos crescendo de dentro para fora, dando de nós mesmos aos que nos cercam.
O Centro Espírita facilita-nos esse processo, na medida em que se constitui num campo propício para esse exercício de convivência fraterna. Nele estimulamos e somos estimulados, criamos laços de amizade verdadeira, temos um campo imenso de trabalho, mas ninguém afirma que fora dele alguém não possa se realizar, melhorar-se e contribuir para uma sociedade mais justa e feliz.
Estimulemos a participação dos companheiros, auxiliemo-nos uns aos outros, todavia, evitemos julgar, não apenas os que se afastam, mas também os que permanecem. O julgamento adequado compete a Deus e este, até onde compreendemos, é uma fonte perene de estímulos e não de censuras.
(1) BOFF, Leonardo. Fundamentalismo. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. p. 25.
(2) CAMARGO, Pedro de (Vinícius). O mestre na educação. 8. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. Cap. 12, p. 64.
Fonte: revista Reformador, da FEB, de Novembro de 2006